domingo, 20 de dezembro de 2009

CAPÍTULO III

SABE QUE DIA É HOJE?
No SOLAR CASTELLI, Soraya, esposa de Genaro vai até o escritório do marido e o encontra como sempre ocupado, negociando venda e compra de dólares, com a máquina de calcular lendo o jornal.
- Bom dia! – Soraya cumprimenta o marido
- Bom dia. – Genaro responde, sem
- Sabe que dia é hoje? - pergunta ela, com expectativa.
- Sei, 22 de dezembro, e daí?
- E daí, que 22 de dezembro é data de quê? – Soraya insiste tentando obter a resposta esperada.
- De quê? – Genaro devolve a pergunta, intrigado.
- Ô “carcamano”, hoje é o dia que seu irmão Vítor faz 50 anos!
- Ah, Soraya, eu preocupado com negócios que tenho que resolver e você me vem com aniversário de Vitor!
- Ele é seu irmão! Não vai ao menos ligar pra ele?
- Depois! Tenho muito que fazer! Tenho uma reunião importante hoje! – Genaro diz com ar de desprezo.
- Não pode tirar uns cinco minutos que sejam pra pelo menos fazê-lo pensar que se lembrou?!
- Eu tenho compromissos que não posso adiar! Você vai ficar me enchendo até que eu ligue, é?
- Genaro...Eu sou muito grata ao Vitor, porque ele deu a maior força pra nós.
- É grata pelas bebedeiras também?
- Genaro, quem vive de passado é museu, o Vitor já não bebe há mais de 15 anos!
- É? Pra mim quem tem um vício como o dele é alcoólatra toda a vida!
- Ele sempre diz que Jesus libertou-o da bebida e mesmo que eu não seja da religião dele, eu acredito nisto.- Soraya defende.
- Sempre defendendo o “cunhadão”, não é assim que você o chama? – Genaro debocha irritado.
- É. O “cunhadão”, que o próprio irmão despreza e que eu quero bem como a um irmão. Você tem inveja dele!
- Mas... – Genaro fica com a voz abafada pelo riso - Esta foi o máximo! Não sabia que a minha mulher era tão boa de piadas! Eu, com inveja do Vítor?! Inveja daquele lunático, daquele “Bíblia”, que pensa que pode mudar o mundo por causa do “Deus” que ele apregoa?!
- Ô Genaro, ele não só apregoa, como vive o que acredita e isso é maravilhoso! Eu queria ter a fé que ele tem!
- E pra quê? Pra ficar enchendo o saco das pessoas, dizendo que tem que aceitar Jesus, senão vai pro inferno?!
- Ele nunca me disse isso, nunca encheu o saco de ninguém e ele trata a Suzana como se fosse sua própria filha! Tanto ela quanto a Sandra e a Sônia, que não fazem pra ele nenhuma diferença em relação aos cinco filhos dele!
- Quatro! - Genaro corrige com sarcasmo.
- Quê?!
- O Miguel é adotado!
- Racista! – Soraya revolta-se, pois sente o desprezo do marido pelo rapaz por ser negro - E hipócrita! Por acaso eu sou “branca de neve?” Aquele menino é maravilhoso. Tanto ele quanto o Allan são muito diferentes desses que você convida pra suas reuniões, churrascos, feijoadas à beira da piscina e olham pras garotas como mercadoria!
- Todos são muito educados! – Genaro protesta
- Por causa do seu nome, empresário Genaro Castelli é que eles não se engraçam mais com as garotas!
- Ah! Você não tem mais o que fazer?! Não enche o saco! – Genaro retruca agressivo, levantando a voz.
- Não gosta de ouvir as verdades, é? Eu não fico escutando barbaridades calada. Aliás, isto é o que atraiu você. Você não ficaria casado tanto tempo com uma pateta qualquer! Eu gosto de ser justa e esta é uma qualidade que minha filha também tem.- Soraya afirma com orgulho.
- A sua filha, tem me dado muito trabalho, mas eu já dei um bom corretivo nela!
- Ah! Aquela velha história da suspensão no colégio! Genaro, - Soraya respira fundo e controla-se - a Sandra estava de prova que foi por amor à Sonia. As meninas são inseparáveis! Ela errou, exagerou, mas você muito mais!
- Como! Eu não ia corrigir aquele absurdo?! A menina era filha de amigos meus e eles romperam comigo!
- A briga foi por defesa à Sônia! Eu disse e vou repetir mais uma vez.
Soraya rememora a briga ocorrida há pouco mais de um mês:
- A menina estava o tempo todo, no vôlei, implicando com a Sônia, dizendo que ela não jogava direito, chamando-a de “enferrujada” - por inveja, pois é lindo aquele cabelinho ruivo – aí, a Suzana ficou com raiva.
No momento em que via a menina Carolina implicando com Sônia, Suzana comentava raivosa com Sandra:
- Essa “lambisgóia loura” tá implicando com a Sônia! Não vou ficar aturando!
- Deixa ela pra lá. – Sandra aconselhou.
- A Sandra é conciliadora, é ponderada, ajuda a Suzana a refletir e procurou contê-la. - Soraya ao relembrar o fato exalta as qualidades de Sandra- Mas, quando a menina deu uma bolada na Sônia - que a Sandra garantiu, foi proposital - ela ficou louca de raiva, por defesa à prima!
Suzana ao ver a prima Sônia levar uma “bolada”, é tomada de uma revolta incontrolável:
- Desgraçada! Toma pra você aprender a não agredir mais a minha prima!
Suzana, furiosa bateu no rosto da menina e rolou com ela no chão
- Me larga, sua cretina! – gritava Carolina, a menina, com desvantagem por ser muito menor e tentava defender-se dando unhadas em Suzana que segurava suas mãos. Sandra, que socorria Sônia que chorava de dor de cabeça, percebeu a briga e gritou:
- Professora! Alguém ajude!
Cláudia, uma menina mais forte, segurou Carolina, enquanto a professora deteve Suzana, repreendendo as duas:
- Meninas! Que absurdo!
Hermínia, a coordenadora, que assistiu de longe a briga, com autoridade intimou:
- Agora mesmo para a diretoria!
Enquanto a professora, Suzana e Carolina vão para a diretoria, Sandra levou Sônia para colocar gelo na cabeça. As respectivas mães são chamadas. Dona Arlete, a diretora, muito severa, repreende exclamando:
- O que está acontecendo aqui?! Isto é um colégio, não um ringue de luta livre!
- Ela deu uma bolada na minha prima! – acusou Suzana, chorando de raiva, apontando para Carolina.
- Cala a boca, Suzana! – ordenou Soraya – A Sandra é a que tem mais condições de explicar o que aconteceu. Por favor, Sandra, fale você.
Sandra que já estava presente relata com muito equilíbrio o ocorrido e Hermínia concluiu:
- Dona Arlete, as duas estão erradas. A Carolina provocou e a Suzana não soube se conter. Tenho certeza de que não é o exemplo que as duas tem em casa.
- Se a minha filha tem que ser suspensa, ela tem que ser também. – Soraya exigiu.
- Botando panos quentes, é?! Ela é o dobro do tamanho da minha filha! – a mãe de Carolina idignou-se.
- Absolutamente. A minha filha errou e será castigada. – respondeu Soraya com firmeza – Mas, a sua filha começou e deve ser punida também! Eu sempre tive este colégio no melhor conceito, mas se não houver justiça, eu não só tirarei minha filha daqui, como farei muitas pessoas saberem do fato.
- Está resolvido: as duas erraram e serão suspensas por uma semana. – Hermínia decide.
Soraya repreendeu a filha dentro do carro:
- Não é esta a educação que eu lhe dou! Eu entendo que tenha ficado indignada pela implicância com a Sônia, mas perdeu a razão quando a agrediu fisicamente. O seu pai mantinha negócios com o pai dela e já sei que vai me encher o saco! Se bem que estou mais aborrecida por você ter se exposto daquela maneira! Você tem o direito de sentir raiva, mas tem que aprender a se dominar! Eu estou falando com você! Olhe para mim!
- Desculpe, mãe. Eu não olhei pra você porque fiquei sem jeito, não fiz por mal.
- Bem... Vamos pra casa.
Após relembrar o fato ocorrido no colégio, Soraya desabafa com Genaro:
- Você tem raiva dela por que ela fez um outro poderoso cortar com você! Ficou sendo menos um pra eu aturar!
Soraya respira fundo e prossegue com mais calma:
- Genaro, eu pensei em me divorciar de você várias vezes, mas não fiz, primeiro, porque eu creio que ainda pode renascer dentro de você o homem alegre e romântico que eu conheci há quase 20 anos, que cantava pra mim, fazia serenatas, já numa época em que ninguém mais ligava pra isso; e por que se eu fizer isto, a Suzana vai ficar louca, ela fica em pânico se eu brigo com você e eu não quero que a minha filha se sinta culpada. Quando você deu aquele castigo ela me fez prometer que eu não ia falar com você para amenizar a sua “pena”. Você fez dela uma prisioneira! Durante um mês, ela ficou sem direito a nada, só a comer, coisa, aliás, que ela pouco fazia e que me preocupou muito.
- Eu fui até mais condescendente na metade do castigo.
- Por que ela chegou a ter uma anemia e eu tive que chamar o médico!
- Eu tinha que endireitar aquela menina! Se não tomarmos cuidado...Não sei não!
- E você acha que tomar cuidado é fazer o que você fez com ela?
Soraya relembra o episódio que se deu em casa logo que chegou do colégio com a filha:
- Suzana! Venha aqui! – chamou Genaro, furioso.
Suzana vai até o escritório do pai acompanhada da mãe, amedrontada, percebendo que este já sabe do fato e tenta explicar-se:
- Pai... Eu...
- Cala a boca! – Genaro repreendeu com ódio – O pai da menina ligou para mim e cortou relações comigo! O que está pensando?! Como você se atreve a me prejudicar nos meus negócios, a me humilhar deste jeito?!
- Calma, Genaro! – Soraya interveio.
- Calma?! Esta menina me envergonha! Você quer agir como uma qualquer, é? Então vai ser tratada como uma!
Genaro dá uma violenta bofetada em Suzana, que cai e é amparada pela mãe, dá um grito de dor levando a mão ao rosto e aterrorizada sobe correndo a escada gritando numa crise nervosa. Genaro tenta alcançá-la, mas Soraya, decidida, coloca-se na frente e adverte:
- Se quiser bater mais nela, vai ter que bater em mim primeiro!
Suzana trancou-se no quarto e Soraya bateu à porta, preocupada com ela:
- Suzana. Abre filha, eu quero saber como você está.
- Mãe...Por favor,...Me deixa um pouco sozinha – respondeu ela aos prantos
- Tá, filha...Mas depois eu quero falar com você.
Algum tempo depois, Soraya aflita voltou a bater à porta de Suzana:
- Filha...Eu deixei você sozinha. Você nem comeu nada e eu estou muito preocupada, me deixa entrar.
Suzana levanta da pequena poltrona do quarto da qual não saiu, abriu a porta para Soraya e voltou a sentar-se do mesmo jeito, paralisada e de cabeça baixa. Soraya ajoelhou-se perto da filha, tentando controlar-se ao ver sua fisionomia deprimida. A menina permanecera suada, suja, com os cabelos desalinhados. Soraya perguntou:
- Você não quer comer?
- Não... ‘brigada... – respondeu com olhar distante e melancólico.
- Você tá aí sentada desde a hora que subiu?
- Tô...
Soraya, assustada, reparou que Suzana estava menstruada e impressionou-se com sua apatia por não ter se lavado. Sentindo que a filha estava em profunda depressão, procurou conter-se para dar força à menina e sugeriu:
- Filhinha vai tomar um banho vai, vai relaxar...
- Você foi cruel, foi vingativo! – Soraya diz para Genaro depois de lembrar o triste episódio
- Por que você diz vingativo?!
- Por que você descontou na Suzana a raiva por aquele cara ter cortado com você e também sua frustração por não ter tido um filho homem!
- Soraya, para de me encher, tá?
- Ai, eu vou sair daqui! Não estou mais a fim de discutir, chega!
Saindo irritada do escritório, Soraya assusta-se ao ver a filha.
- Ai, que susto! Você estava aí há muito tempo?
- Não, mãe, eu cheguei agora. Vocês não tavam brigando, tavam?
- Não, filha, nada demais...Você não sabe que a sua mãe é assim, de dizer tudo o que pensa?
- Mas então pelo menos discutindo vocês estavam?
- Mais ou menos...
- Como assim, mais ou menos?
- É que eu lembrei a ele que hoje é aniversário do seu tio Vitor e ele disse que tinha coisas mais importantes...O resto você já pode imaginar, não é?
- É. “Aquele Bíblia”, lunático. – imitando o pai.
- É, mas deixa pra lá. Então? Animada pro aniversário?- Soraya Pergunta.
- E precisa perguntar? - Responde Suzana sorrindo.
Ao longe ouvem a voz de Genaro falando alto:
- Tem sorte que o castigo acabou, hein, moça! Senão não iria!
Suzana ouve de cabeça baixa e olhar triste. Soraya olha para a filha ternamente e diz, segurando seu queixo e erguendo-lhe a cabeça:
- Não liga pra ele não, filhinha...Você vai, com a Sandra e a Sônia, o Alfredo leva vocês e depois a mamãe vai com a tia Lúcia e a tia Helô.
- Meu pai não vai?
- Ele disse que tem compromissos que não pode adiar.
- Não vai nem sequer ligar pro tio Vitor?
- Ah, minha filha, espero que sim. Eu já pedi. Quando eu estiver com melhor humor eu vou pedir outra vez.
- E o tio Paulo e o tio Sérgio, não vão?
- O seu tio Sérgio, como sempre está viajando a negócios, o tio Paulo deve ir.
- Aniversário do irmão e eles nem dão importância! Tio Vitor, dos filhos é o que mais procura minha avó!
- É, mas...Fazer o quê? – Soraya concorda, porém conformando-se.
- É...
- Filhinha, a mamãe vai subir agora, por que tem que fazer umas ligações pra tratar de umas encomendas de natal.
- Que época triste... – Suzana desabafa.
- Triste? Você acha o natal triste? – surpreende-se Soraya.
- Na nossa família, acho.
- Por que, meu amor?
- Por que a maioria bebe, come, joga conversa fora. Tio Vitor até lembra que não é a data do nascimento de Jesus, mas que é uma oportunidade de falar dele.
- É, seu tio Vitor é uma pessoa muito diferente para mim é único! Deus o fez e não deixou cópia! - Soraya ri.
- É - Suzana também ri - em compensação, fez a tia Helena e a tia Helô iguaizinhas, gêmeas, mas pessoas completamente diferentes!
- A tia Helena tem uma personalidade forte, mas é mais ponderada, mais calma. – Soraya analisa.
- É, e a tia Helô, às vezes até faz medo, parece uma governanta alemã, um general! – Suzana observa.
- Também, elas descendem de alemães e o pai era militar! – Soraya analisa - Como é que a tia Helô diz mesmo?
As duas falam juntas:
- “Vamos parar por aqui antes que eu desça o meu barraco e chame a favela – bairro!” – e riem.
Próximo à casa de Genaro e Soraya, no imenso SOLAR CASTELLI, está a casa de Heloísa e Paulo. Os dois descem apressados para sair para um casamento. A filha Sandra está perto do carro.
- Bom dia, pai! Bom dia mãe! – cumprimenta Sandra.
- Bom dia filha! – respondem os dois juntos.
- Vocês vão ao casamento da filha daquele Juiz amigo do papai?
- Fazer o quê? Tenho que aturar aquele bando de puxa-sacos mesmo! – Heloísa lamenta.
- Helô, não sei por que você se contraria tanto em me acompanhar! Eu tenho que estar com minha esposa nas recepções, nos casamentos. – Paulo reclama.
- E me fazer agüentar aquela hipocrisia? – retruca Heloísa.
- Pai! Mãe! Já vão discutir? – Sandra tenta apaziguar.
- Seu pai me cansa!
- Vamos, Helô! – Paulo chama dirigindo-se até o carro
- Pai!
- Hein, Sandra, o que é? Estamos em cima da hora! – Paulo responde irritado.
- Você sabe que dia é hoje? – indaga Sandra, esperando que o pai se lembre.
- 22 de dezembro, e daí? – responde ele com indiferença.
- E daí?! – Sandra impressiona-se com a indiferença do pai
- É, e daí? – retruca o pai.
- E daí, que é aniversário do seu irmão e você nem lembra! – Sandra responde decepcionada.
- Ah! O “Bíblia da família!” “O glória a Deus!” “O Aleluia!” – ironiza Paulo.
- Paulo!!! Lá vem você com seu sarcasmo! – Heloísa irrita-se.
- Ninguém pode falar nada dele na frente das cunhadas! – Paulo reclama irônico.
- Ele é melhor do que vocês em muitas coisas! Inclusive em relação à sua mãe! Vê se não esquece de ligar pra ela pelo Natal e hoje de ir ao aniversário! - Heloísa o repreende.
O dois entram no carro e Sandra ainda lembra:
- A gente vai mais cedo pra ajudar. Vocês não vão muito tarde, né?
- Pode deixar que depois do casamento eu descanso um pouco e vou com as suas tias – responde Heloísa.
- Eu tenho uma reunião de negócios com o Genaro e outros sócios, não sei se posso ir. – Paulo lembra
- Ah, mas vai sim! Se você pode ir “puxar o saco” de todos os metidos no casamento e também na reunião, pode e deve ir ao aniversário do seu irmão, seu metido a besta!
- Mãe, por favor, não fala assim.
- Desculpe, minha filha, mas tá difícil me controlar! Quando eu vejo hipocrisia, minha “favela bairro” desce!
- Mãe vê se não vão ficar brigando até chegar lá e depois ficar de cara feia um pro outro.
- Tá, minha filha. Você pedindo, eu me controlo. – Heloísa se acalma.
- Tchau! – despedem-se de Sandra.
- Tchau! – responde Sandra.
Na outra casa, de Sérgio e Lúcia, Sônia, a filha mais velha do casal, passa pelo quarto do irmão Ivan que está com os olhos fixos no computador.
- Oi! – Sônia, não ouve uma resposta do irmão, mas chegando mais perto, tenta outra vez:
- Oi!
Sem obter resposta e irritada, Sônia berra:
- ÔOOOOOI!
- Ai! Pôxa, Sônia! Eu estava no meio de uma batalha! – Ivan pula para trás, quase caindo da cadeira.
- Eu queria ver se você voltava pra este planeta. –Sônia ironiza
- Ah! Não enche!
- Ivan sabe que hoje é dia do aniversário do tio Vitor?
- Legal. – responde sem a menor emoção.
- Cadê mamãe?
- Saiu, foi fazer umas compras de natal. – Ivan continua a olhar para o computador.
- Tá. Eu vou descer e deixar você aí no seu “mundo sem graça de computadores”
- Chata! – olha rapidamente para ela e logo volta os olhos para a tela.
- Chato é você, seu “computadorolátra!” – retruca Sônia saindo e batendo a porta.
Na casa de Heloísa e Paulo, o filho mais velho do casal, Daniel acorda tonto.
- Ai, que cansaço! Estou precisando do meu “combustível”.
Daniel levanta-se da cama, se dirige até o banheiro. Está só de short e sem camisa e se olha no espelho. Seus olhos estão vermelhos e não para de fungar.
Enquanto isto, na parte central do condomínio próxima ao jardim, vai entrando um carro com Lúcia. Sônia, que está descendo, acena para a mãe. Lúcia sai do carro e cumprimenta a filha com um beijo. Lúcia está com embrulhos e o motorista ajuda a levá-los para dentro.
- Oi, filhinha, tudo bem?
- Tudo bem, mãe. Você vai hoje ao aniversário do tio Vitor?
- Vou, filha, vocês vão primeiro, depois eu vou com as suas tias.
- Papai volta ainda hoje?
- Amanhã. – responde Lúcia disfarçando a contrariedade
Na entrada da casa de Heloísa e Paulo, Suzana e Sandra se encontram.
- Oi prima. – diz sorridente Suzana.
- Oi! – Sandra responde também sorridente.
As duas trocam um cumprimento típico de adolescentes, batendo as mãos.
- Priminha - Sandra abraça Suzana. – Que bom que depois de mais de um mês você vai ver o tio Vitor.
- Eu quase morri de tédio e de tanta saudade dele – diz Suzana com um tom de voz um pouco triste.
- Mas agora passou, morena. “Morena Grau 10!” Não é assim que o tio Vitor fala ?
- É. E você é... – Suzana tenta lembrar do “slogan” da prima.
- “A lourinha dos olhos claros de cristal” –Sandra lembra sorrindo.
- Pois é. Olha a “Bonequinha” chegando!- Sandra cita o “slogan” de Sônia, que aparece
- Oi! Agora o “trio em s” está completo! Diz Sônia, unindo as mãos para cima com as primas.
Naquele instante vem descendo Daniel correndo e gritando, quase atropelando as três.
- UUUUUUUUUUUUUUH! – Grita agitado
- Ai, garoto! – grita Suzana irritada
- Dani! - exclama Sandra olhando o irmão, assustada.
- Desculpe maninha! – responde abraçando-a
- Você não olha pra onde anda, é? – pergunta Sônia também irritada
- Desculpe, “foguinho” – Daniel responde agitado e rindo, num tom implicante.
- Ai, que coisa! Depois eu volto gente! Cara chato! – reclama Sônia saindo.
Daniel sai correndo muito agitado e pega a moto, e enquanto se dirige à garagem bem próxima. Suzana e Sandra se entreolham com espanto.
- Tô achando ele tão agitado. – Suzana comenta intrigada
- É...está de férias da faculdade, então a euforia é dupla.
- E ai, moreninha, tudo bem? – diz Daniel com um ar debochado
- Tudo bem! - Imitando o mesmo tom irônico do primo – E você? - num outro tom de quem quer dizer: “Será que está bem mesmo?”
- Tudo ótimo, priminha, maravilhoso!
- É? – torna a perguntar Suzana com o mesmo ar irônico, de desconfiança.
- Ééééééé! - diz Daniel rindo - O que vão fazer hoje as inseparáveis primas?
- Vamos ao aniversário do tio Vitor. – responde Suzana.
- Oh! Glória a Deus! – zomba Daniel, aos risos.
- Como você é debochado Daniel! Eu não gosto que zoem com meu tio! – Suzana irrita-se.
- Calma! – Sandra apazigua, se dirigindo aos dois – “Meu gatão louro” e “minha pantera morena”, não vão brigar!
- Eu vou nessa, divirtam-se! GLÓRIA A DEUS! – Daniel debocha novamente – ALELUIA! • UUUUUUUUUUUUUUUHHHHHH!
Daniel sai gritando e arranca com a moto. Suzana e Sandra olham assustadas. Suzana olha para Sandra e pergunta:
- O que há com ele?
- Ai... Sei lá... Ele anda muito agitado. Ele é “zoador”, mesmo!
- É, principalmente em relação ao tio Vitor.
- Não esquenta! Minha mãe tem se queixado dele com meu pai porque está saindo muito, troca o dia pela noite.
- Ele não tá de férias?
- É, mas ela o acha muito pouco interessado pela faculdade. Ela não só se queixou do Dani, como do meu pai em relação a ele. Ela ainda vai estourar! Como diz o tio Vitor: “Vai haver barulho no chatô!”. Meu pai que se cuide. Ela reclama que ele só pensa em trabalho... – Sandra lamenta
- É... Minha mãe também se queixa disto em relação ao meu pai...Como eu queria que fosse diferente!
Suzana faz uma pausa, fica com um ar de tristeza, suspirando:
- Sabe, Sandra, a família do Tio Vitor pra mim, é uma família ideal, é a que eu gostaria de ter.
- Mas a vida deles nem sempre foi um “mar de rosas”, a tia Helena sofreu muito, minha mãe contou. O pai delas, o meu avô, tinha bronca dele por ele ter se envolvido em política... Depois porque ele bebia muito.
- É, eu lembro...Ah, mas tudo passou! É por isso que eu ainda tenho esperança que as coisas por aqui mudem. Nós temos tudo aqui: piscina quadra de tênis, Tv a cabo, internet...- Suzana dá um suspiro profundo - Mas falta o principal...
- O quê? - Sandra Pergunta não entendendo
- União familiar, felicidade plena, verdadeira. – Suzana fala desabafando, expressando um grande desejo
- Você não se sente feliz? – Sandra Pergunta preocupada
- Eu...Não sei explicar...Eu sinto um vazio...
- Você ficou muito triste nestes últimos tempos, por causa daquela briga no colégio, né? – Sandra lembra.
- É...Mas eu não me arrependo! Meu pai podia me surrar até tirar sangue de mim que eu faria tudo outra vez! –Suzana afirma com revolta.
- Mas você exagerou... – Sandra pondera.
Suzana olha para Sandra com aquele olhar de cumplicidade. Logo, aparece outra vez Sônia, com melhor humor.
- Oi, meninas, voltei! Trouxe o meu diário. Escrevi um capítulo especial pelo dia de hoje.
- É? Que graça! Eu também – Suzana admira-se com a coincidência.
- E eu idem! – completa Sandra.
- Vamos ler juntas? – propõe Sônia.
- Agora não vai dar, porque eu preciso levar o Lalau pra passear. –Suzana lembra.
- Daqui à uma hora, a gente se encontra no sótão lá de casa, que eu tenho uma surpresa pra vocês, tá? – Sandra avisa.
- Combinado! – Suzana concorda.
Suzana vai correndo até a casinha de Lalau, seu cachorrinho, um poodle preto, toda sorridente por vê-lo.
- Vem cá, xodó da mamãe! Que saudade! Vamos passear? Fofo!
Descendo correndo com o cachorrinho, Suzana chega ao portão eletrônico e Viriato a cumprimenta:
- Bom dia, Suzana!
- Bom dia! – responde ela sorridente.
- Vai sair com o “filhinho”?
- É! – diz Suzana rindo – Meu xodó! Vamos passear, né fofinho? Mas eu vou perto. Eu podia até passear aqui pelo “pipi dog”, mas eu quero é ver gente, rua! Tchau Viriato!
- Tchau! Cuidado, hein? – Viriato alerta
- Deixa comigo! – responde ela fazendo gesto de positivo com o polegar.
Suzana sai, vai descendo um pouco a ladeira e vê um cachorro enorme querendo atacar Lalau. Grita apavorada e coloca Lalau no colo. Um homem grandalhão e muito mal humorado, que segura o cachorro, exclama repreendendo-a:
- Ô garota! Não olha pra onde anda?!
- Ah...Eu é que não olho, é? Este assassino quase acaba com o meu Lalau e o senhor ainda chama a minha atenção? É tão covarde quanto o seu cachorro! Eu sou uma dama, ouviu?
- Você é muito folgada, isto sim! E é bastante atrevida!
- Você sabe de quem eu sou filha?
- Não! E nem quero saber!
- Pois é bom saber que eu sou filha do empresário Genaro Castelli, proprietário de uma das casas do SOLAR CASTELLI aqui perto e eu não sou de diminuir ninguém, mas você me desacatou, expôs meu filhinho ao perigo e eu posso lhe processar! – Suzana fala levantando a cabeça com um ar de superior.
- Você deve se achar “a tal!” Eu vou embora, não tô pra aturar gente metida a besta!
O homem sai resmungando e Suzana se sente o máximo. Olha para Lalau e diz:
- Viu, filhinho? Pra alguma coisa serve o nome do seu “avô”.
Sandra e Sônia ficam na expectativa no sótão, olhando pela janela.
- Ai... A Suzana tá demorando... – Sônia reclama.
- É...Ah! Tá entrando! – Sandra vê - Eu vou começar a procurar aqui nas caixas o que eu quero mostrar.
- Estou curiosa... – Sônia confessa.
- São retratos! – Sandra anuncia.
- É? Que legal! – Sônia entusiasma-se.
De repente, entra Suzana correndo:
- Oi, meninas O “trio em s” está novamente completo!
- Porque você demorou tanto? – pergunta Sônia.
- Ah, um ridículo veio com o monstro dele e quase mata o meu Lalau!
- Já posso imaginar o “barraco!” – Sandra exclama.
- É! Paguei mesmo pra ele! Disse de quem eu era filha e ele saiu logo de perto. – Suzana conta orgulhosa de si.
- Bem, muita conversa e pouco papo.. Qual é a surpresa? – Suzana pergunta
- Primeiramente, vamos ler nossos diários, depois ver os retratos. – anuncia Sandra.
- Ah! Posso começar pelo meu? – pede Suzana
- À vontade – dizem Sandra e Sônia.
- Bem, hã, hã - Suzana pigarreia
Rio, 22 de dezembro de 2001:
Meu querido diário
Hoje é o dia mais feliz da minha vida, pois é o dia do jubileu de ouro do meu querido tio Vitor! Para mim ele é um super – herói! Ele foi militante político e por amor à sua mulher a tia Helena, deixou a política pra lá, embora continuasse por “debaixo dos panos”, ajudando a muitos políticos que ficaram em situações difíceis. Tio Vitor venceu na vida muitas lutas, inclusive a mais dura, contra a bebida. Ele é muito engraçado! O que eu mais admiro no tio Vitor é que ele é evangélico, mas não é chato. Dá sempre bons conselhos pra gente, como um segundo pai. Ele deu muita força pro namoro dos meus pais e ensinou canções pro meu pai cantar pra minha mãe. Tia Helena – mulher do tio Vitor é linda - uma mulher muito dedicada ao lar e aos filhos. É uma mulher de Deus, como diz o tio Vitor. Vamos ajudá-la a fazer uma festa inesquecível, pra marcar esta data tão maravilhosa. Vamos gravar em vídeo, vai ser demais! Até mais, diário, amanhã vou ter muito mais pra contar!
Suzana
- Agora é a minha vez – reivindica Sandra.
Meu querido diário
Hoje é o dia que o primogênito da família Castelli, meu tio Vitor, faz 50 anos. Minha alegria é dupla, pois sou sobrinha dele, que é irmão de meu pai, Paulo e também de sua esposa, Helena, irmã gêmea de minha mãe, Heloísa. Ele é como um segundo pai. Sempre muito atencioso e ótimo pai. É amigo de todas as gerações vive cercado de pessoas de 8 a 80 anos, ou até mais! Ele é pedagogo e também escritor, por causa da ditadura teve de morar na Itália, onde ainda vivem muitos parentes nossos, e onde meu avô, que infelizmente não conheci, nasceu. Será inesquecível!
Tchau, diário, mais tarde a gente se encontra!
Sandra
- Agora eu. – Sônia prepara-se para ler.
Oi, diário
Meu tio Vitor faz hoje 50 anos. Ele gosta de música romântica. Identifico-me muito nisto com ele, porque sou muito romântica também. Ele gosta de tocar violão e cantar pra ela, a gente até se emociona vendo um amor tão lindo. Tiveram problemas, mas o amor venceu . Acho os dois um exemplo. Hoje à noite, vamos dar a ele uma festa inesquecível!
Até amanhã terei grandes novidades!
Sônia
- Agora , vamos aos retratos! – lidera Sandra.
As três meninas começam a vasculhar vários retratos jogados dentro de caixas e começam a fazer comentários:
- Olha, gente... É a vovó! – Sandra reconhece
- Tá linda - Suzana aprecia
- Ela ainda é uma senhora bonita –Sônia observa.
- Gente...Que gato que tio Vitor era! – Suzana, admira o retrato do tio.
- É...e tinha mais cabelo também! – Sandra comenta rindo.
- Ele não canta: “É dos carecas que elas gostam mais?” – lembra Sônia rindo.
As três riem.
- Olha só: a tia Helena, minha mãe e a tia Hélida, a minha tia que mora nos Estados Unidos. – mostra Sandra.
- É a sua versão morena – Suzana compara.
- A vovó de noiva! E este é o nosso avô, que a gente nem conheceu... - Suzana observa
- Olha aqui: o meu avô, General Carajás! - Sandra mostra outro retrato
Enquanto as meninas estão entretidas, Heloísa e Paulo chegam em casa.
- Ai, que saco! Não via a hora de acabar aquilo! – Heloísa esbraveja.
- Você é intolerante demais Helô – Paulo critica.
- É? Porque eu não dou para “puxa - saco” igual a você?! Mas você não pode se queixar, não fui deselegante com ninguém! Aturei a palhaçada até o fim!
- Palhaçada?!! – Paulo indigna-se
- É! Aquelas peruas com aquele papo supérfluo, aqueles empresários só falando de negócios! Isto me enche!
- Eu hein, Helô...Tudo isso só por um compromisso social?
- Compromisso social... – Heloísa ironiza - Eu estou mais interessada no meu trabalho, nos meus filhos! Você deveria se interessar neles também!
- Eu me interesso. Só não tenho preocupações em relação a eles! – Paulo justifica-se
- Que a Sandra não causa preocupações, eu concordo...Mas você há um bom tempo nem conversa com o Daniel. E o cargo que você ia dar pra ele? Não acho este menino aplicado na faculdade. Ele precisa ter noção de responsabilidade, de horários. Tá virando um parasita! E tudo por sua culpa! “Bananão!” – grita irritada.
- Helô! Respeite-me! – Paulo levanta a voz ridiculamente.
- Você não se dá ao respeito como pai! Joga tudo nas minhas costas! Esse menino chega de manhã, dorme até à tarde. Hoje ele saiu mais cedo e sei lá pra onde foi, com que companhia está andando! A vida dele está misteriosa...Mas vai entrar nos eixos! Enquanto estiver debaixo do meu teto, vai ter que “dançar conforme a música!” – Heloísa afirma com autoritarismo.
- Você tá exagerando! Ele já tem 19 anos! –Paulo argumenta
- Mais uma razão para ele ter noção do que é ser homem! Faz alguma coisa pro seu filho não ser um inútil!
- Tá Helô... Agora me deixa subir e tomar um banho.
- Você vai ao aniversário do Vitor, ouviu? – Heloísa reforça antes que ele suba.
- Tá, Helô...Mais tarde. Eu tenho que estar na reunião com o Genaro! – Paulo fala enquanto sobe
- É... Sempre mais tarde! – Heloísa protesta, inconformada.
- Ai...Não enche, Helô! - Paulo grita de cima.
- Alice! Alice! - Heloísa chama a empregada aos gritos
- Pronto, Dona Heloísa. - Alice vem apressada.
- Cadê a Sandra?
- Ah! – Alice bate a mão na cabeça lembrando – Ela tá lá em cima no sótão olhando fotos com as meninas!
- Ih! Deve estar uma bagunça lá! Elas já comeram?
- Não. Não quiseram nada até agora. –Alice responde.
- Esqueceram-se da vida vendo as nossas fotos. Eu vou lá em cima falar com elas.
Enquanto isso, as meninas continuam entretidas vendo as fotos.
- Ai, gente! Olha só: minha avó Marta! – Sandra mostra a foto
- Parecia uma atriz de cinema. Olha a pose de perfil, brincos de esmeraldas – Suzana aprecia.
Heloísa entra, batendo de leve na porta, devagar e saúda:
- Oi, trio “tricolor!” – em alusão às cores de cabelos das três.
- Tia! – Suzana exclama – Estávamos vendo seus retratos e o da sua mãe. Olha!
- Ai, que saudade... - Heloísa pega o retrato
- Ela era linda, tia. – Suzana comenta
- Era... – Heloísa concorda – Meninas, vocês até agora não comeram, não é?
- A gente nem tá com fome, mãe. – Sandra responde – Estamos “devorando” as fotos!
- Quando acabarem de ver as fotos, não se esqueçam de guardar todas no lugar, sim? E não percam a hora do aniversário do tio Vitor.- Heloísa recomenda. - Sandra, você sabe do seu irmão?
- Ele saiu de moto antes do meio-dia e até agora não voltou. – Sandra responde, preocupada com a reação da mãe.
- Antes do meio-dia?! – Heloísa exclama surprêsa – Então tá evoluindo... Há pouco tempo tava acordando depois de uma hora da tarde! Estou descendo, tchau!
- Tchau! – respondem todas se apressando em guardar as fotos.

5 comentários:

  1. Nossa como os irmãos do Vítor se tornaram egoístas,principalmente o Genaro.Estou ansiosa pra ver como está o Vítor!

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  2. Que retrato de famílias destruídas, apesar de terem tudo o que o dinheiro pode comprar.

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  3. Não é nenhuma novidade que o dinheiro compra tudo menos felicidade.Que bom que sabemos e que temos a felicidade verdadeira e duradoura.
    Como disse a Ana Maria: "Pobre menina rica"
    As atitudes dos irmãos de Vitor é presente em nossas realidades.Mas, a bíblia diz que seriamos humilhados(não sei se é essa a palavra)Por causa do nome de Deus.
    Muito boa a história das três primas e amigas.Gostei também de como elas são confidentes para ler seus diários umas para as outras.

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  4. percebi essa segunda parte da estória como uma trama muito bem pensada e tecida .. tudo muito coerente e fica evidente os precedentes da outra parte da estória .. essa conexão, embora extremamente necessária, para quem continua uma estória de uma outra parte, é realmente difícil de se fazer sem deixar furos!! vc tem conseguido isso!
    parabéns!

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